"Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão" (Mateus 7.5)
O Evangelho segundo Mateus nos relata que Jesus repreendeu os homens que usavam o rigor da lei religiosa para punir a mínima coisa naqueles que não se conduziam conforme o esperado, mas estes homens não observavam o poço de incoerência em que suas próprias vidas estavam mergulhadas. Jesus disse que a trave no olho fazia com que eles vissem incorretamente o cisco no olho do outro.
Como é difícil fazermos avaliações constantes, avaliações sobre nós mesmos, sobre nossa religião, sobre nossas crenças, idéias e valores. Como é difícil olhar para "dentro" sem medo do que será visto.
Já leram o Retrato de Dorian Grey de Oscar Wilde? Sobre este livro eu conto em outro post futuramente. O que posso adiantar é que o belo Dorian Grey não suportou ver sua podridão retratada através de uma pintura, um auto-retrato, que dia após dia se deteriorava cada vez que ele pecava, assim sua imagem outrora bela, se enchia de manchas, rugas e cicatrizes.
Já escrevia sobre a hipocrisia do homem, o fidalgo Franco Sacchetti que é autor de O Livro das 300 Novelas (Trecentonovelle), obra cheia de anedotas, historietas cômicas baseadas em fatos reais e que nos fornecem uma eficaz imagem dos costumes (e do humor moralista) do Renascimento italiano. Aí vai um dos meus favoritos:
DOM POMPÓRIO - FRANCO SACCHETTI (Circa 1332-1400 - Itália)
DOM POMPÓRIO, MONGE, É DENUNCIADO AO ABADE PELA SUA EXAGERADA GULA; E CRITICANDO O ABADE COM UMA FÁBULA, LIVRA-SE DA CENSURA.
Em tempos que lá se vão, havia num famoso mosteiro um monge de idade madura, mas notável e grande comilão. Vangloriava-se de comer numa única refeição um quarto de gordo vitelo e um par de capões.
Tinha este monge, que se chamava Dom Pompório, um prato ao qual pusera o nome de oratório de devoção, e onde cabiam sete grandes escudelas de sopa. E, além do conduto, ele, cada dia, tanto ao almoço como ao jantar, enchia o pratinho de caldo ou de outra qualquer espécie de sopa, não deixando sobrar a menor migalha. E todos os restos que os outros monges deixavam, fossem poucos ou muitos, eram apresentados ao oratório e ele os punha na devoção. E, por mais sujos e imundos que fossem, pois que tudo servia aos fins do seu oratório, devorava-os a todos que nem lobo esfomeado.
Vendo os outros monges a sua desencadeada gula e voracidade, e admirados em extremo de tanta indolência, com palavras ora boas ora más o repreendiam. Porém, quanto mais o corrigiam os monges, tanto mais lhe crescia o desejo de juntar mais caldo ao seu oratório, pouco se lhe dando de qualquer repreensão. Tinha, entretanto o glutão uma virtude: não se zangava nunca; e cada um podia contra ele dizer o que quisesse que ele não o levava a mal.
Deu-se que um dia o denunciaram ao reverendo abade; o qual, ouvida a queixa, o mandou vir, e lhe disse:
- Dom Pompório, fizeram-me uma grande representação contra ações vossas, a qual, além de constituir grande vergonha, suscita escândalo em todo o mosteiro.
Respondeu Dom Pompório:
- E que oposição me fazem a mim esses acusadores? Sou o monge mais mansueto e mais pacífico de vosso mosteiro; não molesto nem estorvo nunca a ninguém, antes vivo com tranqüilidade e quietude, e se sou por outrem injuriado, sofro com paciência e nem por isso me escandalizo.
Disse o abade:
- Então, parece-vos louvável este ato? Tendes um prato não de religioso, mas de fétido porco, no qual, além do vosso trivial, pondes todos os restos dos outros, e sem respeito nem vergonha, não como criatura humana nem como religioso, mas como besta esfaimada, os devorais. Não percebeis, homem grosseiro e inútil, que todos vos têm como seu bufão?
Respondeu Dom Pompório:
- E como deveria envergonhar-me, padre? Onde se encontra agora a vergonha no mundo? E quem a teme? Mas, se me dais licença para falar com segurança, responder-vos-ei; se não, obedecerei a vossas ordens, e observarei em silêncio.
Disse o abade:
- Dizei o que vos aprouver, que estamos contentes em que faleis.
Tranqüilizado, disse Dom Pompório:
- Pai abade, estamos na situação daqueles que carregam odres às costas: cada um vê o do companheiro, mas não vê o seu. Se eu comesse iguarias lautas, como o fazem os grandes senhores, decerto comeria muito menos do que como. Mas, comendo iguarias grosseiras, de fácil digestão, não me parece vergonhoso o muito comer.
O abade, que vivia suntuosamente, com o prior e outros amigos, de bons capões, faisães, perdizes e demais espécies de aves, compreendeu o que queria dizer o monge; e receando ser apontado por ele às claras, absolveu-o, permitindo-lhe comesse a seu talante; pior para quantos não sabiam bem comer e beber.
Indo-se o abade, Dom Pompório, absolvido, dia a dia dobrou a comida, acrescentando ao santo oratório do bom prato a devoção; e porque era seriamente repreendido dos monges por semelhante bestialidade, subiu ao púlpito do refeitório e com belos modos contou esta breve fábula:
- Encontraram-se, já faz muito tempo, o vento, a água e a vergonha numa taverna, e comeram juntos; e, praticando de coisas várias, disse a vergonha ao vento e à água:
- "Quando, irmão e irmã, voltaremos a estar juntos tão pacificamente como agora?"
A água respondeu:
- "Certamente a vergonha diz a verdade; pois quem sabe quando virá ocasião de nos reencontrarmos juntos? Mas, se eu te quisesse encontrar, ó irmão, onde fica a tua morada?"
Disse o vento:
- "Minhas irmãs, cada vez que me quiserdes encontrar para gozarmos o prazer de estar juntos, olhai por qualquer porta aberta, ou rua estreita qualquer, que logo me encontrareis, pois é ali a minha residência. E tu, água, onde moras?"
- "Eu estou, disse a água, nos mais baixos pauis, entre aqueles caniços; e por mais seca que seja a terra, sempre lá me encontrareis. E tu, vergonha, qual é a tua estância?"
- "Eu, em verdade, respondeu a vergonha, não sei, pois que sou pobrezinha e por todos enxotada. Se olhardes entre os grandes, não me encontrareis, porque não querem ver-me e zombam de mim. Se olhardes entre a piche, são desavergonhados que não se importam comigo. Se olhardes entre as mulheres, tanto casadas como viúvas e donzelas, tampouco me encontrareis, dado que fogem de mim como de coisa monstruosa. Se olhardes entre os religiosos, longe deles estarei, pois que com bastões e galhas me espantam; de sorte que até agora eu não tenho habitação onde pousar; e, se não puder acompanhar-vos, veja-me privada de toda a esperança."
Ouvindo isto, o vento e a água moveram-se a compaixão e acolheram-na em sua companhia. Não ficaram juntos por muito tempo, porque se levantou grandíssima tempestade, e a pobrezinha, trabalhada do vento e da água, não tendo onde pousar-se, afundou no mar.
Pelo quê eu a tenho procurado em muitos lugares, e anda a procuro; mas não consegui encontrá-la, nem a ela, nem a ninguém que me soubesse dizer onde ela estava. E, não a encontrando, não me importo dela nem muito em pouco; e por isso obrarei à minha maneira, e vós à vossa, pois que hoje no mundo não se encontra a vergonha.
FIM